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O esposo de Emilie é sem sombra de dúvidas o ponto de fusão das linguagens encontradas no interior do escrito. Não há personagem que esteja marcada pelo silêncio e pelo olhar como ele, pois apesar de emitir poucas vezes o discurso (palavra) ele é o que tem a maior presença no seio da linguagem. 

 

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Arte verbal amazónica

por Max Pinheiro

 

I. Introdução

Tem-se com este trabalho a intenção de evidenciar, ainda que timidamente, a existência de um verdadeiro tratado sobre a linguagem e suas questões, permeando por completo toda a tapeçaria lingüística do romance Relato de um certo Oriente (1989), de Milton Hatoum. O que se pretende aqui é abordar a linguagem enquanto tensão: a comunicabilidade e a falta de comunicação, a incompreensão, a limitação da linguagem e as dificuldades inerentes ao próprio ato de comunicar-se com o outro e consigo mesmo. O silêncio e o olhar recebem no romance um tratamento privilegiado, muito em função da profusão de significados que estas modalidades de linguagem podem apresentar quando se abre o diálogo entre o homem e o mundo, motivo pelo qual serão também o mote principal e o fio condutor das discussões propostas neste artigo, em que se tratará de três personagens cruciais para o maior esclarecimento das questões aqui levantadas, a saber: Soraya Ângela, o pai de Hakim e Lobato, o curandeiro.

II. A tensão da linguagem

Neste capítulo serão abordadas as passagens do romance em que a linguagem se apresenta como tensão, como sintoma de concentração de comunicabilidade, apresentando com maior evidência as personagens Soraya Ângela, o esposo de Emilie e Lobato (o curandeiro), vinculando-os a outras teorias que afinem com a expectativa do romance.
Serão utilizadas as citações do livro, realizando vinculações com outros textos que coadunem com o intento acima exposto, tendo como objetivo evidenciar e descrever, simplesmente, esses instantes de tensão da linguagem.
O silêncio e o olhar são sem dúvida, as duas modalidades de linguagem que mais contém a referida tensão, posto que essas modalidades de linguagem atravessam toda a tapeçaria lingüística do texto.

II. 1. O silêncio da inocente

Soraya Ângela representa no romance um momento de tensão, pois essa personagem quase invisível, que surge poucas vezes no romance e que nasceu sem dois sentidos (a audição e a fala) é, sem dúvida, uma superação da linguagem no romance. Logo nas primeiras páginas ela surge como um acontecimento lingüístico, pois seu olhar e silêncio se superam, através de uma simbiose de reações onde o corpo, o gesto, os grunhidos, que parecem a primeira vista ser uma atitude animalesca, na verdade representam modos de comunicabilidade. Esse personagem, que vivi nas sombras da sociedade familiar e da cidade explode ações lingüísticas quando, em seu silêncio e em suas posições meditabundas, força a comunicação, a qual é desvelada pela primeira vez quando Anastácia corre em direção a Emilie e seus filhos que estão à mesa tomando café:

“... Nunca aconteceu um desses prodígios ou pequenos milagres, mas na véspera daquele natal, Anastácia Socorro entrou correndo na copa gritando “a menina já é letrada” e quase todos acorreram ao quintal: os três filhos de Emilie, os vizinhos e as amigas dela, o irmão Emilio, e à frente de todos Sâmara Délia...
... Emilie chegou depois, e todos se afastaram para que ela visse Soraya Ângela sentada entre os tajás brancos e com o giz vermelho à mão esquerda rabiscando no casco da tartaruga Sálua a última letra de um nome tão familiar. ” (Hatoum, 2000, p.13 - 14)

A grafia neste caso não é o grande carro chefe da linguagem, mas representa a ponta de um iceberg muito maior, pois este personagem fugidio concentra em si, um conjunto de sentimentos, aflições e percepções subjacentes no conjunto das carências entre personagens como seus tios (os irmãos de Hakim), o seu avô e Dorner.
Os expectadores vêem com complacência aquela criança miúda no pátio do sobrado, nas sombras, ocultada por sua mãe quando dos passeios por algumas vielas não muito trafegáveis da cidade; as crianças suas contemporâneas se afastam de Soraya como de um animal atroz; no entanto, o autor dedica uma atenção peculiar a essa personagem, ela não só reproduz as ações e os movimentos dos animais e dos homens, mas representa o que Umberto Eco denominou de estrutura ausente, pois não depende da reprodução para garantir uma marca, quando ela imita os sentinelas na frente do quartel ou os irmãos sicilianos ela os apresenta como eles são no tempo (no devir), ou como o texto nos mostra:

“... nada parecia escapar as suas andanças, como se o olhar fosse suficiente para interpretar ou reproduzir o mundo...” (Hatoum, 2000, p.18)

É uma personagem que narra constantemente, ao seu modo, as ocorrências miúdas de seu fluxo existencial que devido à localização estrutural do discurso em que os outros personagens encontram-se, sua profusão de linguagem ou é ignorada, ou infantilizada, ou odiada, como é o caso de seus tios, os irmãos de Hakim.
O silêncio e o olhar são marcas profundas de uma personagem que diz bastante tudo o que quer dizer ao mundo e no mundo. A linguagem e seus diversos modos de apresentar o mundo são, neste personagem, o modo de apresentar o Ser em sua intensidade, demonstrando mais uma vez que é preciso verificar a existência da linguagem abordando-a enquanto universalidade.
           

II. 2. O silêncio e o olhar do patriarca

A palavra é ideológica, segundo Baktine, mas de que maneira fica o silêncio como expressão diante de uma trama como esta no romance. O esposo de Emilie é sem sombra de dúvidas o ponto de fusão das linguagens encontradas no interior do escrito. Não há personagem que esteja marcada pelo silêncio e pelo olhar como ele, pois apesar de emitir poucas vezes o discurso (palavra) ele é o que tem a maior presença no seio da linguagem –é o patriarca que atravessa o atlântico e constitui uma família, montando um negócio (parisiense) que os sustenta e garante um padrão de vida pertinente aos interesses familiares.
Personagem semelhante aos personagens de Júlio Cortazar, que não precisam ter um nome ou sobrenome, mas que apresentam uma marca registrada no campo da linguagem que é inconfundível, pois o esposo de Emilie surge mudo e permanece calado durante grande parte do romance, com o alcorão em baixo do braço e em silêncio com os familiares, exceto com Emilie. Ele conversa com os mercadores e pescadores pobres que vivem na cidade flutuante, e senta-se ali no meio dos humildes portando-se como um igual. Ele conversa também com Dorner, pode-se dizer que este representa sua única amizade durante todo o romance. No capítulo terceiro, Dorner o encontra zangado no interior da parisiense, mas, mesmo assim, não perde a oportunidade de perguntar-lhe:

“...Indaguei-lhe, sem mais nem menos, se andava em busca do Paraíso, de algum paraíso terrestre.
–Não é uma pergunta que se faz a um simples sirgueiro –contestou com a placidez de sempre; e, caminhando até o balcão, acrescentou: –O paraíso neste mundo se encontra no dorso dos alazães, nas páginas de alguns livros e entre os seios de uma mulher.
Aproveitei sua disposição para uma conversa (pois não poucas vezes ele sentenciou que o silêncio é mais belo e consistente que muitas palavras), e tentei sondar algo do seu passado... ” (Hatoum, 2000, p.70)

Essa conversa numa tarde de 1929 é uma das poucas transcritas no livro, mas em um personagem silencioso como este cabe remontar ao texto do professor Lorival Holanda, o qual trata do signo no silêncio para destacar a presença heideggeriana da constituição do ente do Ser da linguagem, onde a figura silenciosa e solitária do pai de Hakim representa a conexão do manancial lingüístico que o romance traz.
É comum durante o romance Hakim se referir a seu pai como um indivíduo grande e distante, assim como Samara, por ser carente em excesso, imagina que seu pai a odeia, quando ela se transfere para morar na parisiense, coisa que não ocorre, pois o amor que seu pai sente por ela é tamanho que seus gestos trazem perplexidade a todos, inclusive a Emilie; quando, por exemplo, ele planta mudas no quintal da parisiense para ela e numa certa manhã ao alvorecer ele vai ao mercado comprar peixe e ao retornar dirigi-se ao sobrado, convidando Emilie para irem juntos à parisiense almoçar com Samara, atitude que deixou Emilie extasiada.
Hakim relatou a presença de seu pai em sua vida da seguinte maneira:

“... Eu replicava, dizendo que na leitura das Suratas não havia olhos solidários aos do meu pai, pois do seu confinamento só compartilhava o Livro: as palavras estavam impressas na sua solidão” (Hatoum, 2000, p.97)

Esse personagem imbui-se de um silêncio que, assim como sua neta, beira a surdez: não pela ausência pura e simples de sons, mas talvez, pela proliferação aguda de linguagem. Ele define em uma breve oração os liames que atravessam toda a trama do romance:

 “Quando alguém permanece um bom tempo calado, se não estiver dormindo deve estar pensando no amor ou na morte” (Hatoum, 2000, p.150)

II. 3. O curandeiro

De origem misteriosa, Lobato é uma breve personagem que traz consigo a possibilidade de vazão de linguagem através da sua mudez enigmática e do seu olhar esclarecedor, pois desde o inicio da narração ele já está inscrito de modo subjacente: ele orienta Anastácia a procurar a casa de Emilie, o motivo, desconhece-se tanto quanto sua origem. As passagens dele no romance nunca são na posição de emissor de linguagem, entretanto está num nível anterior a emissão, que é o da atitude. Posto que, segundo Hakim:

“... Nunca conheci um homem tão silencioso, mas no seu olhar podiam ser lidas todas as respostas, já lapidadas, às perguntas que lhe eram dirigidas” (HATOUM, 2000, p.92-93)

A este respeito parece importante transcrever as palavras do Prof. Emmanuel Caneiro Leão, quando de sua apresentação da obra de Martin Heidegger, Ser e Tempo:

“... A escuta é a dimensão mais profunda e o modo mais simples de falar. O barulho do silêncio constitui a forma originária de dizer. No silêncio, o sentido do ser chega a um dizer sem discurso nem fala, sem origem nem termo, sem espessura nem gravidade, mas que sempre se faz sentir, tanto na presença como na ausência de qualquer realização ou coisa. Aqui o discurso simplesmente se cala por não ter o que falar e, neste calar-se, tudo chega a vibrar e viver na originalidade de sua primeira vez. É o tempo originário do sentido.” (Heidegger, 1997, p.15 ).

Sua primeira aparição é ao encontrar o corpo de Emir, feito que o aproxima da família de Emilie e permiti uma longa amizade, mas nunca emitindo som algum, exceto o do seu olhar que semiologicamente se aproxima do trabalho de Roland Barthes, O Óbvio e o Obtuso, que representa a capacidade expressiva do olhar sem, no entanto, agregar-se como signo.
O seu silêncio também exprime volição de linguagem, tanto que incomoda aos mais sensíveis.
           

III. Conclusão

Para concluir este trabalho é importante verificar a passagem do encontro entre Samara Délia e Hakim, nos últimos dias antes que este viaje para o sul, já após ela ter perdido sua filha e ter se tornado uma reclusa em alguma sala do subsolo da parisiense. Têem ambos a oportunidade de um encontro bastante esclarecedor, mediado basicamente pelo olhar e pelo silêncio.
            Samara torna-se definitivamente uma personagem muda incondicionalmente, pois até em seus sonhos quando reencontra sua filha, ela não consegue falar, enquanto que o seu rebento conversa horas e horas. Além do mais, os irmãos vivem anos suspensos na masmorra do silêncio, o que resulta no fato deste encontro ser a única oportunidade de saciar todas as carências de comunicação que há entre eles:

“... todo este tempo em que trocamos poucas palavras e alguns olhares, acabou nos aproximando, pois o silêncio também participa do conhecimento entre duas pessoas” (HATOUM, 2000, p.117)

Ou em um outro momento do mesmo encontro:

“... Pela primeira vez nossos olhos se encontraram, e quantos pensamentos povoaram esse encontro, que não foi breve...“ (HATOUM, 2000, p.118)

Diante de uma infindável quantidade de perquirições entre ambos, estas são saciadas do seguinte modo:

“... Deixei a pergunta no ar, até que o silêncio a apagasse... Eu, que tinha ido conversar com ela quase não abrira a boca...” (Hatoum, 2000, p. 119)

Esse encontro dos irmãos, filhos de uma mulher comunicativa e austera e de um homem solitário e silencioso, representa um perfeito epílogo para este capítulo.

 

BIBLIOGRAFÍA

Barthes, Roland. O óbvio e o obtuso. Nova Fronteira. 1990. SP

Eco, Umberto. Como se faz uma tese. Perspectiva. 2000. SP

Eco, Umberto. A estrutura ausente. Perspectiva. 1991. SP

Foucault, Michel. As palavras e as coisas. Martins Fontes. 2002. SP

Holanda, Lorival. Sob o signo do silêncio. EDUSP.1998. SP

Heidegger, Martin. Ser e tempo. Vozes. 1997. R

 

 

© Dimas Arrieta Espinoza, 2010

 
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