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No romance Candunga, o sertanejo é retratado como elemento exógeno na paisagem amazônica, como o “outro”, que não se encaixa na herança homogênea, de ascendência cabocla, com a qual o discurso oficial forja nossa identidade cultural “pura” e “típica”. 

 

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A documentalidade em Candunga, de Bruno de Menezes: retratos da migração nordestina para a amazônia

por José Victor Neto

 

O presente trabalho tem por objetivo analisar o romance Candunga, do poeta, escritor e folclorista paraense Bruno de Menezes. Para isto, estaremos utilizando ferramentas teóricas à luz dos Estudos Culturais, bem como da Teoria Literária.

O romance Candunga, escrito por Bruno de Menezes, foi ambientado na década de 1930, e trata da saga dos migrantes nordestinos na Amazônia, mais especificamente na zona bragantina, região Nordeste do Pará. O texto conta a história de Candunga, um jovem retirante nordestino, e de sua família que, acossados pelas terríveis secas que assolam o Nordeste brasileiro, vêm para o Pará, (a)traídos pela fama de que a região amazônica desfrutava e ainda desfruta, como sendo uma “terra da providência”, onde se poderia fazer riqueza, ou, ao menos, (sobre)viver com alguma dignidade.

O drama de Candunga e de sua família representa o drama de todo um coletivo de retirantes nordestinos que se fixou na Amazônia durante o século XIX e início do século XX, muitos deles sob as mesmas condições retratadas no romance. O modo como é retratado o drama dos retirantes em sua fuga dos flagelos da seca é matéria também de outras obras da literatura nacional, algumas de grande renome, a exemplo do romance Homens e Caranguejos, de Josué de Castro; e de Vidas Secas, de Graciliano Ramos(1).

Há muito que a saga dos migrantes nordestinos na Amazônia se ressentia de um registro que viesse a trazer à tona suas histórias, destacando sua importância na tão diversificada formação da cultura popular paraense. Dentre os méritos a serem destacados na referida obra, esse certamente é o mais digno de nota. Mas vale ressaltar aqui também a presença de um certo “regionalismo romântico”, afetando uma forte tendência à homogeneização cultural da Amazônia, pautada no mito de uma região cuja cultura e identidade seriam, essencialmente, decorrentes de nossas heranças indígenas. Tal orientação, dirigida pelos discursos oficiais vigentes, tende a desconsiderar as contribuições de outros povos para a composição tão heterogênea de nossa cultura. No entanto, para Ana Pizarro, “las actuales investigaciones nos muestran que la Amazonía no és solo indígena, que los sujetos sociales son múltiples y que su imaginário da cuenta de la turbulenta história del área” (PIZARRO, 2005, p.131).

No romance Candunga, o sertanejo é retratado como elemento exógeno na paisagem amazônica, como o “outro”, que não se encaixa na herança homogênea, de ascendência cabocla, com a qual o discurso oficial forja nossa identidade cultural “pura” e “típica”. No que toca à maneira como tal acontecimento é elaborado no interior da narrativa, gostaríamos de fazer algumas observações que em muito aproximam o romance Candunga de uma outra obra de renome nas letras brasileiras. Trata-se, pois, de Os Sertões(2), de Euclides da Cunha.

O modo como é descrito o sertanejo nordestino em Candunga, em algumas passagens lembra-nos bastante as descrições carregadas dos laivos etnocêntricos com as quais Euclides da Cunha retratou estes seres representantes “das sub-raças sertanejas do Brasil(3)”. Em seu terceiro capítulo do tomo O Homem, há um sub-capítulo intitulado O Sertanejo, no qual Euclides retrata a fisionomia e os gestos do homem do sertão, mitificado como um colosso rude e desengonçado, cuja força e pujança emergem subitamente por entre gestos e posturas ridículas e indolentes, em uma descrição que beira ao pejorativismo caricatural. Diz-nos Euclides no referido trecho:

“É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humilde deprimente”. (Cunha, 2003, p. 115)

Em Candunga, mesmo tendo o narrador de Bruno de Menezes se dedicado à retratação da vinda e da vida dos retirantes nordestinos em terras amazônicas, atendo-se aos seus flagelos e suas misérias, ele o faz ainda da perspectiva do “eu” que se propõe a retratar o seu “outro”, seu diferente e, às vezes, seu oposto.  Tal afirmação apóia-se nas várias passagens onde os nordestinos são descritos com a face do bárbaro pelo civilizado, complacente à sua rudeza e aos seus modos tidos como brutos. Descrições semelhantes às da obra de Euclides podem ser percebidas no Candunga ao longo de todo o romance e, como é corrente em Os Sertões, o narrador de Bruno de Menezes parece apoiar-se em resquícios de convicções que se assemelham às que Euclides da Cunha compartilhava no início do século XX, feitas as devidas atenuações, no que tange à concepção dos sertanejos como uma “sub-raça”, justificando semelhante retrato com os mesmos argumentos embasados em fatores étnico-raciais, concebendo, pois, determinismos de caráter evolucionista.

 Na descrição do velho Gonzaga, logo no início do romance, aparece a primeira delas, quando o mesmo tem sua imagem pintada pelo autor com as cores da “mística do fatalismo que persegue sua raça”(4). Podemos observar os mesmos laivos etnocêntricos quando, em outra passagem do texto, o autor refere-se ao “fadário”(5) penosamente cumprido pelos “descendentes da raça mártir.(6) (grifo nosso).

O narrador dedica ainda trechos inteiros do romance a demarcar esse afastamento entre o “eu” – representado pelo narrador do romance – e o “outro” – que por ele é aqui retratado à distância – pondo-se a diminuir os costumes e hábitos dos migrantes nordestinos. Dentre as diversas passagens, o narrador de Candunga dedica quase um capítulo inteiro a essa tarefa, no qual são criticados os “maus hábitos” dos nordestinos, a exemplo do consumismo, das barganhas em feiras livres e do desperdício despropositado. Há uma passagem do texto que gostaríamos de destacar para melhor exemplificar estas ocorrências. Trata-se das descrições acerca da musicalidade, das manifestações populares e dos folguedos característicos das “colônias”:

“Nos municípios localizados ao longo da ferrovia, não se encontram os grupos de musicistas para as danças populares, com seus instrumentos característicos, como sucede nas localidades onde predomina o elemento nativo, sem mescla nordestina.
O caboclo tem outra sensibilidade artística na sua música, nas suas danças, na sua religião, (...) pois os “cearenses”, só sabem se divertir ao som da sanfona, da viola sertaneja, em cantorias monótonas e saudosas”.(Menezes, 1954, p.111)

E segue demarcando a diferença entre o “eu” do narrador e o “outro”, objeto descrito: “Os seus costumes, a sua religião, a sua índole, são outros”. E então finaliza sua descrição dos diferentes hábitos dos retirantes:

“Eis por que, na zona bragantina, a dentro das colônias, os divertimentos festivos são pouco animados; as musicas que executam, nas sanfonas e nas violas, só arrastam os pares no passo do “baião”, do “corrido”, num ritmo desajeitado”. (Menezes, 1954, p.111)

Ainda quanto ao etnocentrismo presente na obra Candunga, temos o modo como é retratada a relação dos retirantes nordestinos com o novo meio em que se encontram. O nordestino é aqui retratado como um ser destruidor, que não sabe interagir com a natureza, como o “elemento nativo”, como quando da realização da coivara por Candunga e Gonzaga. Os dois retirantes, causadores de um incêndio de grandes proporções, são aí retratados como os “dois inquisidores da floresta”, causadores de destruição, “repetindo o tradicionalismo de seus patrícios, que transplantam a aridez, em vez de florescimento” (1954, p.28)
     
Em seu livro O controle do Imaginário, Luis Costa Lima aborda questões bastante semelhantes sobre Os Sertões, acerca do etnocentrismo com que Euclides da Cunha retratou os sertanejos, de aspecto tão bruto e tosco, para quem, segundo Costa Lima, “(...) por mais que simpatizasse com as populações que procurava vingar, não podia deixar de ser um estranho. Um preconceituoso estranho”. (LIMA, 1989, p.229). À obra de Euclides, cuja percepção acerca dos fatos ocorridos naquele período mostra-se bastante aguçada, devemos o mérito de haver retratado com riqueza de detalhes o conflito ocorrido em Canudos entre as forças republicanas e os insurgentes monarquistas, liderados por Antônio Conselheiro. Mas, ao considerar-se o etnocentrismo e os juízos de valor plasmados na obra, percebemos a representação desses fatos conduzida pelo filtro das convicções cristalizadas na época do escritor acerca da “inferioridade” das “raças sertanejas”, pautadas no evolucionismo, do qual o mesmo era partidário.

Acerca destas ocorrências, o professor Luis Costa Lima procura esclarecer-nos que “Julgar que a observação nos entrega a verdade do objeto, nos torna apenas objeto da verdade de nossos preconceitos”. (Lima, 1989, p.231). Tal afirmativa poderia ser aplicada ao Candunga de Bruno de Menezes sem riscos de se cometerem aqui grandes injustiças. Mas as discussões que julgamos mais pertinentes para a análise de Candunga vêm a ser justamente as que dizem respeito às fronteiras entre o “documental” e o “ficcional”, abordadas por Costa Lima acerca da obra Os Sertões.
      

Das relações entre o documental e o ficcional

Segundo Costa Lima, a ficcionalidade é resultante de um processo ao qual, em seu livro Sociedade e Discurso Ficcional, o autor se refere como “teatro mental”. Tal processo consiste em um jogo mimético e constitui-se, pois, como condição preponderante para que haja prevalência da ficcionalidade. A ficcionalidade, por sua vez, constitui-se em característica primordial de um objeto a que se possa classificar como literário. Luis Costa Lima, em análise da obra Os Sertões, afirma-nos que:

“Embora a área do ficcional seja mais ampla que os limites da literatura – além do cinema e da estória em quadrinhos, há um ficcional no quotidiano que não se confunde com o literário – não há literatura, no sentido estrito do termo, onde não haja ficcionalidade. E, como já atrás escrevemos, a ficção é resultado de um processo em que a mimesis é dominante”. (Lima, 1989, p.237)

Em Candunga, há prejuízo à mimesis, quando o autor, em um empenho que o aproxima bastante seu romance de uma obra de caráter predominantemente documental, dedica extensas passagens da obra à descrição da realidade das comunidades rurais daquele período e região; algumas, podemos dizer, assemelhando-se mesmo a cartilhas de procedimentos agrícolas; outras dedicadas às características climáticas da região, descrevendo as atividades dos colonos de acordo com as estações e meses do ano; retratando o quotidiano da colônia e mesmo as características culturais daqueles indivíduos, alvo predileto de seus preconceitos. A documentalidade da obra torna-se, assim, patente, em termos do privilégio dado pelo escritor à retratação da realidade pura e simplesmente. O romance de Bruno de Menezes, através do teor essencialista que impregna suas descrições, afasta-se de maneira evidente do objeto retratado pelo etnocentrismo demonstrado para com o mesmo. Tal característica de afastamento do objeto a ser retratado o aproxima ainda d’Os Sertões, de Euclides, acerca do qual fala nos Costa Lima:

“Por isso, não podemos falar sem mais em principio de seleção mimética em “O Homem”, porquanto aí é freqüente a reprodução de preconceitos etnocêntricos ante a um outro tão diverso que o agente mimetizável, ou seja, o autor, o rejeita, tomando-o como bronco, desequilibrado e retrógrado”. (Lima, 1989, p.238)

O prejuízo à mimesis detectado em Candunga, à semelhança de Os Sertões, decorre de uma cisão onde a obra, orientada no sentido de realizar um percurso ficcional e literário, perde sua diretriz principal, alternando-se entre o romance e a dura tarefa de retratar de maneira fidedigna a realidade dos acontecimentos ocorridos por ocasião da migração nordestina, dando destaque à denúncia das condições de exploração a que estavam submetidos os retirantes assentados na região bragantina. É provável que, na dupla orientação a que se submete a escritura de Candunga, a segunda via apontada tenha sido a mais bem sucedida, de acordo com a perspectiva a que se propõe o narrador. A mimesis, aqui representada pelo teatro mental, não admite essa dupla articulação da escrita, a qual parece objetivar açambarcar ficção e realidade em um só embornal de retirante.

O jogo mimético enquanto deslocamento na apropriação usual da realidade, cuja reelaboração da mesma gera o produto ficcional, cessa de agir a cada período em que o escritor, abandonando o teatro mental, despede-se da ficção e firma votos bastante rígidos com a documentalidade, agarrando-se ao esteio firme e seguro da realidade verificável, afinando-se, pois, à reprodução dos discursos de poder autorizados. Questão semelhante é analisada pelo professor Costa Lima n’Os Sertões, no qual um Euclides dividido entre a documentação da realidade pura e simples e a reelaboração mimética da mesma, passa sua obra pelo filtro de suas convicções evolucionistas e se afasta de seu “outro” tão diferente, relegando boa parte do produto de sua obra à mera documentação de suas impressões.  Segundo Costa Lima:

“Como já dissemos, a mimesis é um processo cujo resultado final é o produto ficcional. Este exige que nos desloquemos para outra província finita de tematização da realidade. Por isso uma obra não pode conter a dupla estrutura de discurso da realidade e de discurso ficcional”. (Lima, 1989, p.239)

Como já dissemos mais acima, devemos o mérito à obra de Euclides pela percepção aguçada e pelo retratado detalhado do conflito ocorrido no Arraial de Canudos. É correto afirmar que, no que tange à sua percepção dos fatos e à maestria e elaboração com que é capaz de criar imagens e metáforas, para o qual emprega o autor um vocabulário excepcional em construções que demonstram toda a sua erudição, não se pode atribuir unicamente a estes aspectos o caráter literário de uma obra e, segundo Costa Lima, nem os próprios contemporâneos de Euclides atribuíram a Os Sertões essa classificação. Essa mesma preocupação para com a linguagem truncada e repleta de um virtuosismo erudito parece estar presente também no Candunga de Bruno de Menezes. No entanto, deve ser reconhecido o esforço atento para com o vocabulário característico às camadas populares que compunham a massa de migrantes oriundos do sertão nordestino. Tamanho esmero para com a linguagem empregada na escritura da obra talvez intente diminuir ainda mais a linguagem do nordestino e, com isso, obter mais um mecanismo de diferenciação entre o “eu” narrador e o “outro”, aqui retratado, numa oposição entre o “belo” e o “grotesco”. Mas há, também, que se considerar que a literatura não detém o monopólio sobre este ou aquele tipo de escrita, muito embora ela seja fruto da adoção, por parte dos gramáticos, de usos da língua escrita consagrados pelos grandes literatos, tomados como modelo de uso adequado da escrita, ou seja, a norma culta. No que tange a estas questões, a experiência de Costa Lima nos diz que:

“Cabe entretanto perguntar: por que a força da linguagem caracteriza a literatura? Por acaso a fluência, a capacidade de vir aquém da aparência descritiva, a descoberta de metáforas condensadoras seriam privilégios da literatura?”. (Lima, 1989, p.237)

É necessário considerar, também, que o caráter documental é algo indissociável de “qualquer gesto” e “qualquer manifestação” humana, e que a literatura, como também faz parte desse conjunto de manifestações, também carrega em si o caráter de documento. Do mesmo modo, também obras de historiografia e sociologia têm o caráter de produtos das interpretações subjetivas de seus autores acerca de um período ou objeto de estudo, colocando-os em um patamar que os aproxima da literatura. Contudo, faz-se necessário discernir aqui a literatura de mero documento através da noção de “teatro mental”, que caracteriza a predominância da mimesis; e demarcar os usos e interesses a que serve a obra documental. Referindo-se ao texto literário, Costa lima nos diz que “o texto de intenção literária se cumpre “segundo todas as regras do teatro mental” e, mesmo por isso, afasta de si os princípios a que se subordina o documento” (1986, p.192).

O documento, por sua vez, teria por finalidade representar “o que teria plena existência antes dele e sem ele”. (1986, p.197). No que diz respeito à observação deste “algo outro”, ao qual obedece a confecção da escrita documental, fala-nos Costa Lima, referindo-se principalmente ao romantismo brasileiro, de uma orientação seguida por nossa tradição literária, inclusive em períodos posteriores a este.
Trata-se do veto imposto à ficcionalidade das obras literárias que, obedecendo a um projeto de consolidação do nosso nacionalismo, seguiam a retratar a realidade nacional. Não seria o centro de nossa análise aqui afirmar quais pudessem ser as forças que, à época da escritura do Candunga, pudessem ter orientado sua confecção no sentido de documentar as migrações nordestinas ao Pará. Mas não pudemos deixar de observar na obra elementos que subordinam-se às estruturas de poder político, vigentes na época de sua escritura.

Além da dedicatória que abre o livro, onde o escritor presta homenagem “aos prefeitos das unidades municipais da zona bragantina” – todos citados nominalmente –, no Candunga, é clara a adoção de posturas que referendam o Baratismo, em nível estadual, descrevendo o recorte histórico no qual o Pará viveu sob a égide de Magalhães Barata como privilegiado, onde o próprio interventor figura como sendo justo e enérgico no combate à exploração dos trabalhadores rurais, bem como é retratada, também, sua presteza para com os problemas das colônias. No que toca o campo nacional, há claras demonstrações de referendo ao golpe dado por Getulio Vargas nos anos 30, aqui referido sob a alcunha de “revolução”, como podemos observar nos seguintes trechos, onde o próprio interventor assume a voz:

“— Responda que aprovo tudo! Também as providências tomadas! Dou meu apoio! Remeta ao chefe de policia, para mandar dez praças embaladas, num expresso, buscar esses patifes!
  (...)
— Quero a abertura de um inquérito policial rigoroso! – e mais enraivecido: - Ah, esses galegos, esses “coronéis” da roça, só mesmo todos na cadeia! Pensam que a revolução (grifo nosso) foi feita para isso, mas se enganam!” (Menezes, 1954, p.79)

E ainda mais, agora, na voz de um popular: “- Hum, hum, comadre Noca...Esse interventor é mesmo o cão...Hôme duro de roê...Safado, gente ruim, com ele é na cadeia...Ele tem lá suas razões, comadre”. (Menezes, 1954, p.102).
          
Além mesmo da documentalidade, patente no que se refere à retratação positiva dos poderosos políticos da época, fica também evidente o compromisso firmado pelo autor, não mais com um poder político, mas com suas convicções ideológicas. Em algumas passagens do texto, o autor parece ter a intenção de fazer de seu romance um veículo de politização das massas, um suporte com finalidades de caráter ideológico bastante explicitas, onde pudemos identificar a forte presença da teoria do vanguardismo, das quais tendem a ser partidários os seguidores do Socialismo de orientação Comunista Leninista, segundo a qual uma liderança intelectualmente preparada “conduziria as massas à revolução”. Em Candunga, Romário, o agrônomo, aparece-nos dentro desse processo como sendo esta liderança, pintado pelo autor como o redentor daquele povo sofrido, aquele que poderia libertá-los do jugo dos poderosos, o herói corajoso e humano, comprometido com o esclarecimento das massas ignorantes, pregando a igualdade e a justiça; numa clara apologia ao modelo de organização dos trabalhadores rurais em regime de cooperativa, cujo cunho doutrinário em muito nos lembra os discursos dos sindicatos e partidos de esquerda socialista.          
          
Algumas passagens do texto onde viceja a figura de Romário beiram mesmo a um certo populismo bastante característico, até hoje, de atitudes adotadas por políticos em campanha durante suas aparições em eventos públicos, como quando o agrônomo toma uma criança em seus braços e profere um discurso emocionado, de um idealismo explícito, aos trabalhadores a quem se dirige. Observemos a seguinte passagem:

“E num entusiasmo de todo o seu ser, toma o garoto nos braços, transfigurado e sonhador. Depois, como se destinasse o pequeno ao amanhã, exclama convicto: - tu, sim, hás de pertencer à Humanidade Nova! Em ti estará o Homem livre, senhor de si mesmo! O individuo com dignidade de viver! És um dos elos da verdadeira família humana! – E beija, enternecido, os cabelos serdosos (sic) da criança”. (Menezes, 1954, p.136)

Tudo isto nos leva a crer que, em dados momentos da obra, o engajamento político parece ultrapassar o engajamento estético, relegando a mimesis a segundo plano. Acerca desse tipo de ocorrência, responsáveis, também, pela manutenção do veto ao ficcional, afirma-nos Costa Lima:

“Próprio de uma formação de compromisso é passar-se a ver algo da maneira como se supõe ser a maneira desejada por alguém mais poderoso, que fantasmalmente dirige a nossa própria compreensão. Como a definimos, a formação de compromisso poderia ser comparada a um superego cultural, que incide nos agentes formalmente mais bem-educados da sociedade que a sofre”. (Lima, 1986, p.215)

             O artigo que hora escrevemos constitui apenas um breve estudo sobre esta obra da literatura da Amazônia, e não tem a pretensão de ser uma análise definitiva sobre a mesma, que ainda carece de estudos mais aprofundados. Esclarecemos nossas motivações não intentaram a diminuição da importância da obra analisada, e que Candunga tem o mérito de representar mais um degrau galgado no sentido de inserir na literatura da Amazônia seus conflitos.  Esperamos que, com nossa pesquisa, tenhamos contribuído minimamente para uma abordagem teórica acerca da obra analisada, destacando-a como objeto de interesse aos estudos da literatura no Pará.

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1 As relações desta obras com o Candunga, de Bruno de Menezes, já foram, por sinal, analisadas em artigo pelo professor Paulo Maués. MAUÉS, Paulo. Ressonâncias intertextuais: Bruno de Menezes e Graciliano Ramos. In: Sete Ensaios, 2006, pp.119-125.

2 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Martin Claret, 2003.

3 Ibidem.

4 MENEZES, Bruno de. Candunga: Cenas das migrações nordestinas na zona bragantina. Belém: (...), 1954, p.7.

5 “Sorte, fado, destino imposto por um poder sobrenatural”. Fuente: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa (versión online: www.priberam.pt), 14/11/10, 19:56hrs. Nota del editor.

6 Ibidem, p. 13.

 

BIBLIOGRAFÍA

CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Martin Claret, 2003.

LIMA, Luiz Costa. Documento e Ficção. In: Sociedade e Discurso Ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.

LIMA, Luiz Costa. O Controle do Imaginário. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1989.

MAUÉS, Paulo. Ressonâncias intertextuais: Bruno de Menezes e Graciliano Ramos. In: Sete Ensaios, 2006,

MENEZES, Bruno de. Candunga: Cenas das migrações nordestinas na zona bragantina. Belém: (...),1954

PIZARRO, Ana. Imaginario y Discurso: la Amazonía. in Jobim, José Luiz. Sentidos dos lugares. Rio de Janeiro: ABRALIC, 2005.

 

© José Victor Neto, 2010

 

 
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