Euclides da Cunha viaja pelo país para identificar a imagem do brasileiro, perdido num paraíso há muito dissipado, e o escritor registra sua descoberta da terra e constata “olvidamos a terra; e os esplendores do céu, e os encantos das paisagens entregamo-los numa inconsciência de pródigos sem tutela, à contemplação, ao estudo, ao entusiasmo, e à glória imperecível de alguns homens de outros climas”

 

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Paisagem e identidade: rede de imagens / Paisaje e identidad: red de imágenes

por Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo

 

“Paisagens, país feito de pensamento da paisagem”, o belo verso de Drummond, (1983:451) canta a síntese do processo de invenção do Brasil, pela paisagem, com as poderosas imagens vindas da palavra literária que, sedimentadas na memória cultural, produziram um sofisticado processo de representação da cultura e auto-representação dos sujeitos, como registrou Graciliano Ramos, em suas crônicas, flagrando no cotidiano a sedução do literário.

No interior do país, nas mais afastadas povoações, senhoras idosas tremem, emudecem os óculos gaguejando as histórias do Moço Louro e da Escrava Isaura , emprestam às netas brochuras do romantismo, conservadas meticulosamente. Alencar circula, e deve-se a ele haver por ali tanta Iracema, tanto Moacir. (Ramos,1984:107).

As primeiras décadas do século XX mostram o momento em que a Literatura Brasileira desenvolve um percurso de enfrentamento em direção a si mesma, para refletir acerca do papel do fazer literário diante dessa tradição cultural, romântica e naturalista. Escritores como Lima Barreto, Euclides da Cunha, Monteiro Lobato apresentam em seus contos, romances, ensaios e poemas a reflexão crítica sobre o papel da palavra que, com a mesma força da imagem, criou o país, a paisagem e desenhou a alma do homem brasileiro, como parte de um projeto estético- político que enreda o próprio intelectual.

Foram os olhos contaminados de pensamento da paisagem, utópica, paradisíaca do escrivão Pero Vaz de Caminha, os primeiros a registrar as imagens da terra recém-descoberta, batizando-a de “ graciosa ”, e potencialmente rica, pois, ora “dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem...” (Caminha, 1977:157).

Imagens como a da terra de fertilidade ímpar, com árvores de copas altíssimas, carregadas de saborosos frutos, numa eterna primavera ao ritmo alegre dos cantares de pássaros de mil cores direcionaram os primeiros olhares para o Novo Mundo. Apesar de atenuantes, expressos nos documentos escritos, os colonizadores incorporaram o sentido de milagre à natureza e, debaixo do equador, o extraordinário tornou-se a regra. A convenção romântica também ensinou ao homem brasileiro a ver a terra rica, exuberante, dadivosa; uma paisagem que paralisa a vida, na construção do país homogêneo, unívoco, linear, na palavra ambígua da ficção.

A sensação de caos e desordem, advindos dos frouxos laços integradores de indivíduos que não se sentiam compatriotas, perdurou até a Independência política, em 1822. Era preciso promover a uniformidade, a homogeneidade vinculadas pelo Estado no exercício de uma ideologia nacionalista, com discurso liberal - esvaziado em seu significado primeiro e a configurar-se pela reunião de termos com sentidos inconciliáveis, e até díspares entre si, representando, porém um único conjunto, a nação. O intelectual romântico abraça a tarefa de tornar os brasileiros co-nacionais, mobilizados pela literatura. Nesse sentido, José de Alencar conclama a seus contemporâneos que, iguais a ele, têm a palavra como profissão: “as letras devem ter o mesmo destino que a política” (Alencar, 1960:894).

Politicamente, o ecletismo caracteriza a interpretação romântica de cultura e o resultado mais evidente dessa composição pode ser exemplificado no tom unívoco, estático e grandioso da paisagem : esta, congela o tempo, anula a tragédia do passado de destruição e harmoniza o presente, na descrição exuberante da terra já desfigurada pela exploração predatória e grosseira da colonização. Recurso absolutamente necessário, para transformar conterrâneos dispersos em co-nacionais e vencer a nostálgica sensação de desenraizamento –do português, que contemplava o mar ansioso por retornar; do africano a cantarolar o lamento lúgubre de ser escravo— enquanto o índio era já o exilado, em seu próprio solo.

Para cumprir sua tarefa, o intelectual romântico cria, pela literatura, poderosas imagens. Transfere-se para a palavra que, segundo Alencar, “brinca travessa e ligeira na imaginação” a função do “buril do estatuário”, a “nota solta de um hino” ou a da fotografia, para contrapor-se à linearidade da pintura clássica, ou, ainda,“o pincel inspirado do pintor” que “faz surgir de repente do nosso espírito, como de uma tela branca e intacta, um quadro magnífico, desenhado com essa correção de linhas e esse brilho de colorido que caracterizam os mestres” (Alencar,1980:98).

Por isso, as páginas íntimas da história do leitor -seus retratos de família e lembranças de paisagem- guardam e confundem-se com os mais caros personagens e cenários de ficção. Nesse “universo insinuante e multiforme” (Candido,1987:180), a literatura mapeou geograficamente o país e historicizou um passado, criando elementos de tradição e cultura. É preciso considerar, também, a força da palavra para a criação de uma realidade como uma das nossas marcas culturais, talvez a mais forte. Como bem analisou Octavio Paz, o discurso elaborado à época da descoberta da América definira o homem da nova terra como um ser de pouca realidade, porque sem passado, nasceu feito um projeto do futuro, incrustado na natureza.

Na Europa a realidade precedeu ao nome. América, pelo contrário, começou por ser um idéia. Vitória do nominalismo: o nome engendrou a realidade. O continente americano ainda não havia sido inteiramente descoberto e já fora batizado. O nome que nos deram nos condenou a ser um mundo novo. Terra de eleição do futuro: antes de ser, a América já sabia como iria ser. (Paz, 1992:127)

Nessa perspectiva, paisagem constitui um lugar de apropriação visual e um foco para a formação de identidade, o que supera a concepção estética de gêneros fixos (sublime, pitoresco, pastoral) da literatura, pintura ou fotografia e lugares considerados objeto de interpretação visual e meramente contemplativa. Compreendida como uma cena natural, mediada pela cultura, a paisagem revela-se um meio de troca no qual confluem uma formação histórica particular, e seus valores, em relação à tradição ocidental e suas inter-relações (Mitchell, 1994).

O olhar para a paisagem, portanto, revela na cultura brasileira o desejo de militância do intelectual que utiliza as imagens da natureza para adequar a diferença e o singular -que seu discurso representa- aos princípios epistemológicos do racionalismo europeu. Mesmo a literatura romântica, com suas palmeiras e sabiás, realizou esse duplo processo de integração e diferenciação da tradição Ocidental, já denominado pelo crítico Antonio Cândido, de “ literatura de dois gumes” (1987 :179).

Se considerarmos o outro grande eixo da tradição literária e cultural, a orientação naturalista para a arte, podemos ver o intelectual brasileiro, e seu papel de intérprete da cultura, imerso numa situação paradoxal: como manter-se atualizado, crítica e esteticamente, com um movimento que expressa uma posição combativa –acerca dos problemas que a decadência social da burguesia, e seus valores— mas, falando de um país que subsiste do trabalho escravo e de base agrícola?

No entanto, a aceitação manifesta pelo público brasileiro das obras naturalistas, vale pensar sobre a complexidade de alguns aspectos sócio-culturais que envolvem essa recepção.

Entre esses aspectos, estão a inquietação e o crescimento da camada média da sociedade, em núcleos urbanos mais povoados, a projetar sua influência na imprensa, nas lutas partidárias, nas rebeliões armadas, nas escolas superiores (Sodré,1965). Embora a forma de que se revestiam suas reivindicações viessem do fascínio pelo pensamento eurocêntrico, o tom das formulações políticas e estéticas demonstrava mudanças sensíveis produzidas por incremento de meios de comunicação (telégrafo), transportes (aumento da rede ferroviária e bondes nas cidades) e outros indícios tais como a urbanização, a fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1896, e do Instituto Butantã, em1899, entre outros indicadores das alterações estruturais, na sociedade do final do século, que, ainda, mantinha pesada tradição latifundiária e trabalho escravo.

Se o acolhimento generalizado do naturalismo pode sugerir o desejo de intelectuais de romper com a estagnação e lentidão nas mudanças sociais, justapõe-se, em contrapartida, a consciência da impossibilidade de adoção integral das teorias e normas estéticas dessa escola. Nessa perspectiva, o fascínio pelas regras e preceitos do conhecimento moderno cega o intelectual brasileiro que imagina poder garantir um lugar para dialogar, com a produção do pensamento Ocidental.

Na tentativa de resolver o impasse, há propostas de adequação entre o local, e sua diferença, e o despotismo da racionalidade hegemônica, entre elas destaca-se a escolha da paisagem para a justificativa de não se poder adotar, integralmente, o figurino naturalista. Apresentada pelo intelectual Araripe Júnior (1848-191, crítico literário e membro fundador da Academia Brasileira de Letras) esta proposta busca nas condições climáticas os argumentos para constituir “ a fórmula do naturalismo brasileiro”.

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